Por Cláudio Mendonça dos Santos
A distribuição do ônus da prova é um dos elementos centrais que garantem o equilíbrio entre as partes em um processo judicial. No Direito do Trabalho, onde a relação entre empregado e empregador é marcadamente assimétrica, a correta aplicação das regras probatórias assume especial relevância. A decisão judicial no processo que atribuiu à reclamante o ônus de provar a suposta diferença no pagamento de comissões, revela uma aplicação inadequada dos princípios que orientam o ônus da prova, sobretudo no que tange à aptidão para a produção de provas e à interpretação dinâmica dessa regra, conforme estabelecido no artigo 373 do Código de Processo Civil (CPC).
Este artigo analisa criticamente decisão da 2.ª turma do TRT18, defendendo a aplicação ampliada da Súmula 338 do TST e dos artigos 373 e 400 do CPC no processo trabalhista, por força do artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que autoriza a aplicação subsidiária do CPC aos processos trabalhistas.
No processo em questão, o juiz de primeiro grau, ao decidir a ação movida pela reclamante contra uma empresa de telefonia, enfrentou a questão relacionada à remuneração variável da trabalhadora. O principal ponto de discussão era o não pagamento correto das comissões prometidas pela reclamada, que foram alegadas pela reclamante como sendo de R$ 10,00 a R$ 15,00 por cliente fidelizado.
A decisão de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido da autora, condenando a empresa ao pagamento de diferenças de remuneração variável. Esse montante foi calculado com base em seis vendas por dia, considerando que a reclamante atingia as metas propostas pela empresa, mas não recebia o valor correto conforme o prometido.
A empresa interpôs recurso ordinário, contestando tanto a condenação quanto a metodologia utilizada pelo juiz na apuração das comissões. Alega que apresentou documentos, como termos de pactuação e contracheques, comprovando o pagamento correto das comissões que a reclamante não havia atingido as metas de forma que justificasse o pagamento de comissões além do que foi quitado, no entanto, não foram apresentados os relatórios de comissões.
O julgado teve a seguinte ementa:
“RECURSO ORDINÁRIO EM RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. COMISSÕES VARIÁVEIS. AUSÊNCIA DE PROVA DO NÃO PAGAMENTO DEVIDO. A reclamante não se desincumbiu do ônus de comprovar que as comissões variáveis prometidas pela empregadora não foram pagas conforme o acordado. Prova testemunhal não corroborada com documentos. Recurso da reclamante improvido.”
A decisão da Segunda Turma do TRT 18, ao entender que a trabalhadora teria condições de provar corretamente quais seriam suas comissões devidas, mesmo diante da ausência de relatórios ou documentos fornecidos pelo empregador, é uma interpretação que desconsidera aspectos fundamentais do processo trabalhista e dos princípios que regem o ônus da prova nesse campo.
Primeiramente, no contexto trabalhista, as condições de produção de prova são profundamente influenciadas pela hipossuficiência do trabalhador, que, na grande maioria das vezes, não tem acesso direto a documentos ou relatórios que comprovem o cumprimento de suas obrigações trabalhistas. Quando a testemunha afirmou que as comissões eram atualizadas em um painel, e não há prova que a empresa fornecia a trabalhador a documentos ou relatórios formais sobre essas comissões, cabe questionar a real possibilidade da trabalhadora de comprovar os valores devidos precisamente.
Diante de tal situação, o princípio da aptidão para a prova, amplamente aplicável pela jurisprudência trabalhista e civil, e a distribuição dinâmica do ônus da prova, prevista no artigo 373, §1º do CPC, devem ser aplicados. Esse princípio atribui o ônus de provar um fato à parte que está em melhores condições de fazê-lo. No caso em questão, a empresa, que detém o controle dos documentos e sistemas que registram as comissões pagas, está em posição muito mais favorável para demonstrar o pagamento correto.
Ademais, conforme a Súmula 338 do TST, que trata da presunção favorável ao trabalhador em casos de ausência de controle de jornada, a lógica de presunção deveria ser estendida para situações onde o empregador falha em apresentar documentos relativos a comissões ou pagamentos variáveis. Se o empregador não fornece relatórios detalhados sobre os valores pagos, a presunção deve ser de que as alegações do trabalhador sobre a irregularidade do pagamento são verdadeiras.
Ao considerar que a trabalhadora teria plenas condições de demonstrar quais comissões seriam devidas, mesmo sem acesso aos documentos de controle das comissões, a decisão do TRT 18 parece desconsiderar o contexto de vulnerabilidade da trabalhadora, além de inverter injustamente a carga probatória. A falta de fornecimento de documentos e relatórios formais pela empresa deveria, na verdade, atrair a aplicação das regras de distribuição dinâmica do ônus da prova, transferindo essa responsabilidade para a reclamada, que estava em posição privilegiada para comprovar a correta quitação das comissões.
O artigo 400 do CPC também é aplicável, determinando que, em situações onde uma das partes (neste caso, o empregador) se recusa a exibir documentos necessários para a comprovação de um fato, o juiz pode presumir verdadeiros os fatos que a parte contrária pretendia provar com tais documentos. No caso, a empresa não apresentou os relatórios de comissões devidos à trabalhadora, e, conforme o artigo 400, a presunção de que tais comissões não foram corretamente pagas deveria prevalecer.
A decisão transfere à trabalhadora a responsabilidade de provar a diferença no pagamento das comissões. Contudo, esse entendimento não reflete adequadamente a realidade processual trabalhista, que exige uma abordagem diferenciada da distribuição do ônus da prova, considerando a aptidão probatória e a hipossuficiência do trabalhador.
O artigo 818 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em conjunto com o artigo 373 do CPC, estabelece a regra geral do ônus da prova: cabe ao reclamante provar os fatos constitutivos de seu direito, e ao reclamado a prova dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos. No entanto, o processo trabalhista não pode ser conduzido de forma mecânica, a realidade das relações laborais, marcadas pela desigualdade entre as partes, exige uma aplicação dinâmica e adaptada dessas regras, com foco no princípio da melhor aptidão para produzir a prova.
O artigo 373 do Código Civil permite que o juiz distribua o ônus da prova de forma diferente, dependendo da dificuldade ou impossibilidade de uma das partes cumprir suas obrigações, ou se a outra parte estiver em melhor posição para fazer a prova.
No contexto do Direito do Trabalho, essa regra é fundamental, dado que o empregador, que detém o controle de documentos como folhas de pagamento, relatórios de produtividade e metas alcançadas, está em melhores condições de produzir provas sobre a quitação correta de comissões variáveis. A aplicação da distribuição dinâmica do ônus da prova visa justamente evitar que o trabalhador, parte hipossuficiente e sem acesso a tais documentos, seja prejudicado por uma exigência desproporcional.
Assim, no processo, a lógica correta seria inverter o ônus da prova, transferindo ao empregador a responsabilidade de comprovar que pagou corretamente as comissões pactuadas. Esse entendimento está alinhado ao artigo 769 da CLT, que prevê a aplicação subsidiária do CPC nas situações em que a CLT for omissa, como ocorre na distribuição dinâmica do ônus da prova.
A Súmula 338 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ainda que formulada para tratar especificamente da questão dos controles de jornada, estabelece um princípio fundamental: a presunção favorável ao trabalhador quando o empregador não apresenta documentos que estão sob seu controle. Ela dispõe que, se o empregador não apresenta os controles de ponto, presume-se verdadeira a jornada de trabalho alegada pelo empregado, salvo prova em contrário.
Essa lógica não deve se limitar apenas à questão da jornada de trabalho. O mesmo raciocínio pode e deve ser aplicado em casos de pagamento de comissões, onde o controle documental está igualmente nas mãos do empregador. Quando a empresa não apresenta os registros que comprovem o cálculo e pagamento das comissões, o juiz deve presumir verdadeiras as alegações do trabalhador.
O artigo 400 do Código de Processo Civil complementa a discussão ao estabelecer que, quando uma das partes se recusa a exibir documentos ou objetos que estão sob seu controle, o juiz pode presumir verdadeiros os fatos que a parte adversa pretendia provar com esses documentos. Essa regra é de especial importância no contexto trabalhista, onde o empregador tem a obrigação de manter e conservar documentos que comprovem o pagamento correto de salários, comissões e demais verbas trabalhistas.
Na situação do processo em análise, ao considerar que a reclamante não conseguiu provar suas alegações, o tribunal ignorou que a empresa não apresentou os documentos necessários para comprovar a quitação das comissões variáveis. Se o empregador se recusa ou deixa de exibir tais documentos, deve-se aplicar a presunção de veracidade das alegações do trabalhador, conforme prevê o artigo 400 do CPC.
Além disso, o parágrafo único do artigo 400 dá ao juiz o poder de tomar medidas coercitivas ou mandamentais para compelir o empregador a apresentar os documentos solicitados. Essa é a prerrogativa que o tribunal poderia ter usado para garantir que a verdade dos fatos fosse estabelecida, no âmbito trabalhista, onde o princípio da proteção ao trabalhador deve prevalecer. O uso desse poder é crucial para assegurar que o processo seja justo e as partes tenham as mesmas condições para provar suas alegações.Ao não aplicar esse dispositivo, a decisão deixou de aplicar importantíssimo princípio do Direito do Trabalho: a proteção dos direitos do trabalhador, especialmente no que diz respeito ao princípio da proteção salarial.
No princípio da aptidão para a prova, reconhecido amplamente na doutrina e jurisprudência trabalhista, a parte que está em melhores condições de produzir provas deve assumir esse encargo. No caso das comissões variáveis, é evidente que o empregador tem melhores condições de apresentar os relatórios que comprovam o cumprimento de suas obrigações contratuais.
Ao não aplicar a distribuição dinâmica do ônus da prova e ao exigir do trabalhador a produção de provas que estão sob controle do empregador, a decisão do tribunal favorece injustamente a parte mais forte da relação trabalhista, comprometendo a proteção dos direitos do trabalhador.
A decisão proferida nesse caso ignorou a aplicação dinâmica do ônus da prova, prevista no artigo 373 do CPC, assim como a presunção de veracidade das alegações do trabalhador diante da ausência de provas por parte do empregador, conforme o artigo 400 do CPC. Ao transferir à reclamante o ônus de provar a diferença nas comissões, o tribunal deixou de considerar que o empregador é a parte que detém os meios de prova e que deveria ter sido compelido a apresentar os documentos pertinentes.
Essa decisão perpétua a desigualdade processual e enfraquece a proteção ao trabalhador, contrariando o espírito protetivo do Direito do Trabalho. A aplicação do artigo 373 do CPC em conjunto com a Súmula 338 do TST e o artigo 400 do CPC, aplicável ao processo do trabalho por força do artigo 769 da CLT, teria assegurado uma decisão mais justa e alinhada aos princípios que regem o processo trabalhista.
A distribuição do ônus da prova, especialmente no Direito do Trabalho, não pode ser tratada de forma estática. A distribuição dinâmica do ônus da prova, conforme previsto no artigo 373 do CPC, deve ser aplicada para equilibrar a relação processual entre empregador e empregado, assegurando que a parte mais apta a produzir provas seja responsável por fazê-lo. No caso em análise, o empregador, que controla os documentos relativos ao pagamento de comissões, deveria ter sido compelido a apresentar tais provas, e a ausência desses documentos deveria ter gerado a presunção de veracidade das alegações do trabalhador.
A aplicação ampliada da Súmula 338 do TST e do artigo 400 do CPC, por força do artigo 769 da CLT, é essencial para garantir que o processo trabalhista cumpra seu papel de proteção ao trabalhador, evitando que a parte hipossuficiente seja onerada com uma carga probatória desproporcional e injusta.
A decisão de primeiro grau adotou uma postura adequada ao considerar a dificuldade da reclamante em provar o pagamento incorreto das comissões, uma vez que os documentos estavam sob controle da empresa. A aplicação da regra do ônus da prova prevista no artigo 818 da CLT, em conjunto com a Súmula 338 do TST e o artigo 400 do CPC, garantiu que a reclamante não fosse prejudicada pela ausência de transparência por parte da reclamada. A empresa, como detentora dos meios de prova, tinha o dever de apresentar documentos claros e completos que comprovassem o correto pagamento das comissões, o que não fez de forma satisfatória.
Ao considerar que a trabalhadora teria plenas condições de demonstrar quais comissões seriam devidas, mesmo sem acesso aos relatórios de controle das comissões, a decisão do TRT 18 parece desconsiderar o contexto de vulnerabilidade da trabalhadora, além de inverter injustamente a carga probatória. A falta de fornecimento de documentos e relatórios formais pela empresa deveria, na verdade, atrair a aplicação das regras de distribuição dinâmica do ônus da prova, transferindo essa responsabilidade para a reclamada, que estava em posição privilegiada para comprovar a correta quitação das comissões.
Essa interpretação compromete a proteção ao trabalhador e enfraquece o equilíbrio processual, uma vez que transfere injustamente ao trabalhador o dever de produzir provas que estavam sob o controle exclusivo do empregador. A decisão da Segunda Turma, ao não aplicar a inversão do ônus da prova com base no artigo 373 do CPC e na aptidão para a prova, perpétua uma desigualdade processual que deveria ser corrigida em respeito aos princípios fundamentais que orientam o Direito do Trabalho.
Diante dos fatos relatados e da falta de documentos por parte da empresa, o correto seria aplicar a distribuição dinâmica do ônus da prova, conforme prevista no artigo 373 do CPC, em conjunto com o artigo 400 do CPC, a fim de garantir que a parte com maior aptidão probatória, neste caso, o empregador, tivesse a responsabilidade de demonstrar a quitação correta das comissões devidas. A trabalhadora, que podia vulnerabilidade e sem acesso aos documentos que deveriam ter sido fornecidos pela reclamada, não deveria ser penalizada pela ausência de provas que estão fora de seu alcance.
Portanto, a decisão da Segunda Turma, do TRT 18 merece reanálise para demover a crescente jurisprudência que valida o calote das comissões dos trabalhadores, pois fere os princípios de justiça processual, ao não considerar a adequada distribuição do ônus da prova e a necessidade de proteger o trabalhador em um cenário de evidente desigualdade, a função da Justiça do Trabalho, ao aplicar o direito, é garantir que o empregador não utilize a assimetria de informações e poder para prejudicar os trabalhadores.
Processo: 0011478-67.2023.5.18.0003
Veja a decisão.
Autor: Claudio Mendonça é advogado, pós-graduado em direito previdenciário, com vasta experiência em processo trabalhista, bem como, em ajudar as pessoas a conhecer seus direitos trabalhista e previdenciário.
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